sábado, 17 de abril de 2010

Realizada numa fase muito criativa e apaixonada da minha vida, em 2003, para conclusão do Curso de Arquitectura Paisagista, sob orientação da Professsora Doutora Conceição Castro, a redacção de "As Plantas no Jardim do Século XX na Tradição Ocidental", permanece com grande actualidade, e vem a cada passo a ser-me requisitada para leitura por pessoas interessadas neste domínio.

Por esta razão, e por me parecer ser um instrumento de consulta de grande utilidade, resolvi agora partilha-la com todos neste formato, para o efeito, pouco convencional, de “blogue”. No entanto, além de todas as vantagens de agilidade de consulta que este modelo digital proporciona, a minha intenção é também a de, desta forma, chamar todos os interessados, estudantes, colegas, amigos, ou simplesmente simpatizantes do tema, a contribuir com as suas opiniões, sugestões, experiências profissionais, pesquisas, ou ainda com fotografias originais, ou revalidação ou acréscimo de links, para o enriquecimento dos diversos conteúdos tratados.

Pela minha parte, irei introduzindo os melhoramentos possíveis.
Espero que gostem!

Caso desejem,
poderão encontrar uma versão em pdf no meu site: http://sites.google.com/site/salomecruzarquitectapaisagista/

terça-feira, 13 de abril de 2010

INTRODUÇÃO

A vida do jardim anima-se de uma dupla metamorfose, a metamorfose das plantas e a do pensamento humano. Mistérios permanentes de que captamos apenas algumas imagens fugazes. Ainda assim, nem mesmo uma memória prodigiosa como a de Funes, personagem de ficção de um conto de Jorge Luís Borges, seria suficiente para abarcar toda a sua diversidade. Não é, pois, objectivo deste trabalho levar à exaustão o tema das plantas no jardim do século XX, mas antes criar uma imagem das possibilidades de abordagem que se lhe associam, mais representativas deste período. Trata-se, portanto, sobretudo de um esforço de síntese por meio do qual se tenta, aos poucos, apreender a complexidade e o significado da linguagem vegetal do jardim, mergulhando progressivamente nas suas diferentes dimensões: o pensamento; a arte; o espaço; a ecologia; e o tempo. Dimensões que se vão sobrepondo em camadas para formar um todo que é a imagem global de uma união que julgamos indissolúvel: a das plantas ao jardim.

Enquanto expressão do pensamento, o emprego de vegetação no jardim partilha das mutações que ao longo do tempo sofrem as ideias de natureza e de paisagem, ideias que não é possível dissociar, tanto entre si, como da ideia de jardim. Razão pela qual principiamos este trabalho com uma breve alusão à evolução destes conceitos. Formulada uma ideia de jardim é já possível concebê-lo no espírito, e já feito de plantas certamente. Num segundo momento é a imagem do jardim que surge, e são agora volumes, formas, texturas e cores, a esboçar os seus traços principais. Porém, ainda que se possam apontar alguns princípios para a combinação das plantas, não existem quaisquer fórmulas absolutas que lhes sejam aplicáveis, só da arte pode nascer a beleza da imagem do jardim. Justamente por ser arte, o jardim não se afasta da evolução das restantes artes, em particular das artes visuais, chamando a si, inclusivamente, inúmeros criadores com formação neste âmbito.

Mas o jardim não é apenas imagem, ele é também espaço, um espaço que se percorre, e onde cada uma das suas plantas ocupa um lugar. A arquitectura do jardim, o lugar das suas plantas, a sua estrutura e ordem, é razão de uma das mais controversas problemáticas da arte dos jardins: a da oposição entre modelos formais geométricos e modelos informais naturalistas. Oposição que se tende a dissolver ao longo do século XX, tanto em virtude de uma colaboração mais harmoniosa entre arquitectos e paisagistas, como pela dissolução de uma ideia de artificialidade estritamente associada à forma. Pois, no decurso do século, o jardim transcende a forma, constituindo-se também como dinâmica ecológica. Perspectiva que traz consigo novas atitudes e novas preocupações face à escolha da vegetação: se espontânea, se exótica, ou se uma combinação de ambas.

Tudo isto se desenvolve ao longo do tempo, na história, e no interior de cada jardim. Pois o jardim está vivo, ele transforma-se, respira e cresce. No entanto, o tempo também se transforma. Fenómeno sentido de forma particularmente abrupta ao longo do século XX, em resultado da aceleração generalizada dos modos de vida, que introduz novos problemas à concepção do jardim, em especial no que respeita à compatibilização dos seus ritmos próprios, associados à vida das plantas, com os ritmos acelerados da vida contemporânea.

Para cada uma destas dimensões – pensamento, arte, espaço, ecologia e tempo –, que sempre coexistem em simultâneo em cada jardim, e que aqui se separam em diferentes capítulos apenas por uma questão de método, faz-se breve referência a diversas obras do domínio da arte dos jardins, consideradas representativas por relação aos assuntos tratados. O critério aplicado à sua escolha foi essencialmente o seu carácter inovador no que respeita ao tratamento da vegetação, a sua importância para o desenvolvimento posterior da arte dos jardins e a sua singularidade. Houve ainda, no contexto global do trabalho, alguma preocupação em fazer representar obras associadas a culturas e localizações geográficas distintas. Naturalmente, grandes nomes da arquitectura paisagista do século XX (Geoffrey Jellicoe, Russel Page, Thomas Church, Fletcher Steele, Dan Kiley, Garret Eckbo, John Rose, Jack Wirtz, René Péchère, Dieter Kienast, Kathryn Gustafson, etc.), que teriam certamente muito ainda a acrescentar ao tema tratado – das plantas no jardim do século XX - ficaram excluídos desta selecção. No entanto, o verdadeiro objectivo deste trabalho, não é, como foi já referido, o de fazer uma compilação de formas, mas, pelo contrário, fazer uma síntese, criar uma imagem das possibilidades distintas que ao longo do século se abriram à aplicação da vegetação ao jardim e das quais somos hoje herdeiros.

CAPÍTULO 1 - NATUREZA, PAISAGEM E JARDIM

Figura A1. Escultura de Jorn Ronnau – O Gnomo –, criada em 1993 a partir de uma raiz de faia, na floresta de Marselisborg, na Dinamarca.
“Mudaram os tempos e as civilizações e, com elas, a forma e estilo dos jardins, desapareceram as feras e os génios maus que habitavam o mundo exterior, mas o homem continua a sentir a mesma necessidade de paz e sossego; no Sul, o mesmo sol ardente ainda hoje nos faz desejar a frescura das sombras verdes que descansam a vista e o espírito, e no Norte, embora reduzida a floresta, mantém-se intacta a poesia da clareira e o desejo de luz, tão parcamente concedida pela natureza, que o jardim, alegrando a alma, há-de compensar com as suas cores “ .

Francisco Caldeira Cabral, Conferência proferida no I.S.A., 1940.
Todos os jardins têm em comum a representação da natureza. Esta é a essência do jardim. O que os distingue é a ideia de natureza representada. E como, por sua vez, a ideia de natureza é fruto de um tempo, de um lugar, e de um sentimento da natureza individual, o jardim é um espaço e uma ideia em permanente metamorfose. Na tradição ocidental, uma metamorfose que se opera em estreita relação com as plantas, pois se é verdade que um jardim não se faz somente de plantas, também o é que só um exotismo de ascendência nipónica nos poderá levar a fazê-lo sem elas. As plantas acompanham todos os dilemas e certezas do jardim. Elas são o seu corpo, o espírito humano a sua alma. Em nenhum outro lugar o pensamento se recria mais na sua relação com as plantas (2). Porque é também isto que as plantas são no jardim, expressão de um pensamento. Por isso entendemos necessário aludir de forma sintética neste primeiro capítulo às ideias de natureza, paisagem e jardim, ideias indissociáveis, e às condições essenciais da sua concepção e transformação, pois destas sempre resultam relações distintas com as plantas. A nossa atenção recairá em particular sobre os problemas e inquietações do século XX, porém, tanto recuaremos no tempo sempre que tal contribua para uma melhor compreensão da origem, continuidade e contextualização destes problemas, como, sempre que oportuno, atentaremos nas perspectivas futuras, já que nestas residem as inquietações do presente.

(2) Nas palavras de Caldeira Cabral, “não é por isso de admirar que as técnicas de melhoramento vegetal se tenham desenvolvido na jardinagem muitos séculos antes de passarem à prática corrente em agricultura” (Fundamentos da Arquitectura Paisagista, Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa, 1993, p.48).

No princípio era o Verbo. Antes dele não havia natureza. O homem era então parte da força indizível, infinita e sagrada do cosmos. Ele próprio não era senão natureza. Depois, Deus apartou a luz das trevas, o espírito da matéria e criou o primeiro jardim. O jardim que continha toda a obra da Criação. Foi às portas deste jardim que o homem conheceu verdadeiramente a natureza, o inimigo que haveria de o ocupar em intermináveis batalhas ao longo de séculos. De um lado o homem, do outro os vagalhões verdes em choques sucessivos contra as muralhas da civilização (CHARBONNEAU, 1990).

São as plantas o estandarte do cosmos na Terra. Veios verdes invadindo as frestas das nossas calçadas, os buracos do alcatrão, as frinchas dos muros e paredes. São as plantas de sempre, as do antes e do depois da natureza, o elo que nos inspira a tentar reatar os laços perdidos com o cosmos. As plantas que trazemos para dentro das nossas casas em pequenos vasos e para o interior das nossas cidades, até há bem pouco, apenas na forma de pequenos jardins, criados à imagem do paraíso por um espírito cristão, mais distante da maldição primeira, um tudo nada mais próximo da natureza.

Na verdade, para que o cristianismo da Idade Média se adaptasse às sociedades conquistadas, foi necessário que se tornasse pagão, regressando de alguma forma à natureza, “mas nem por isso deixara de conter dentro dele o princípio de uma dessacralização das coisas” (3). Só o retorno a um paganismo mais profundo, no Renascimento, permitiria que do interior das cidades da Europa, o homem descobrisse a paisagem (BERQUE in DANTEC, 1998). “Forma intrínseca do ambiente para uns, projecção de uma cena interior do sujeito para outros” (4), a paisagem nasceu de uma lenta e gradual submissão do homem à natureza e da natureza ao homem (CHARBONNEAU, 1990). De acordo com Bernard Charbonneau (1990) “desse casamento no qual os campos e as sebes se moldam às formas dos outeiros, cujos vales mostram as quintas e aldeias nos mesmos pontos em que os ramos mostram os frutos. Neles os prados penetram nos bosques, e os bosques nas vinhas. E como não seríamos capazes de dizer onde começa o homem e onde acaba a natureza na paisagem, é impossível distinguir o camponês do seu campo”.

Era de tal forma bela e harmoniosa a paisagem que o homem do período Romântico entendeu que à sua imagem poderia criar jardins. Foi sobretudo nesta altura que se permitiu que a velha inimiga, a natureza, começasse a transpor os contrafortes da civilização – a cidade –, “a cidade dos homens, ainda não a cidade dos automóveis. A cidade dos indivíduos, e da sua palavra, cujo coração é um fórum e não um parque de estacionamento” (5).

Com a natureza representada no jardim por meio da paisagem, começavam na época romântica os primeiros sinais da crise dos conceitos de paisagem e de jardim. Problemas ainda muitos ténues, já que vistos à luz de uma clara distinção entre a cidade e o campo por um homem sensível, animado de um sentimento de profunda pertença à natureza. Contudo, talvez esta necessidade de reatar os laços com o cosmos não fosse senão fruto da consciência nostálgica de que o combate entre o homem e a natureza havia chegado ao fim. A natureza estava dominada, vencida. Ainda assim, durante algum tempo, ela “subsistiu, lado a lado com a civilização” (6).

(3) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.29.
(4) Cf. Augustin Berque in Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1156.
(5) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.22.
(6) Cf. Charbonneau, Bernard, Ibidem, p.35.

Desde a Revolução Industrial a população do globo continua a aumentar e as cidades não param de crescer. O tempo acelera de forma vertiginosa (depois de cinco séculos para passar do leme de cadaste ao navio a vapor, pouco mais de um século bastava para passar ao avião (CHARBONNEAU, 1990). O cinema, o telefone, o automóvel, entram de rompante na vida da cidade, mas os campos continuam a ser os campos, aparentemente imutáveis, e, com eles, repousam as paisagens. É o destino das cidades que maiores preocupações suscita. “Até ao século XIX as cidades cresceram como cresce uma árvore ou um homem. (...) Depois, certo dia , com o progresso da indústria elas explodiram, projectando ao longe, em forma de estrela, a sementeira dos casebres e das multidões, sem que nenhuma muralha desta vez, tenha tido tempo de as reunir” (7). A cidade é agora “uma nebulosa em expansão cujo ritmo ultrapassa o homem; já não é a expressão materializada na pedra de um facto humano, mas uma espécie de catástrofe geológica, um maremoto social, que o pensamento ou a acção humana não conseguem dominar” (8). Um gigante que o homem tenta a custo fazer respirar, chamando em seu auxílio os pulmões da Mãe Natureza. É chegada a altura da criação dos grandes parques, e dos jardins, em clima de intensa prosperidade económica da alta burguesia, retomarem o rumo dos modelos clássicos, rompendo de vez com as fantasias românticas, enquanto os seus criadores se devotam, cada vez com maior afinco, ao urbanismo.

Na verdade, é a mutação e desenvolvimento informe da cidade industrial, o caos urbano, ou mesmo a “morte da cidade”, o berço do urbanismo, e, talvez, a mortalha do jardim, tal como até agora o entendíamos. Pois o jardim é acima de tudo uma criação urbana, seja ele dentro ou fora da urbe. É nas cidades que se estuda o jardim, que se concebe o jardim e, muitas vezes, que se constrói o jardim. É o espírito do citadino que idealiza a natureza. No campo, vive-se a natureza.

Quando a estrutura da cidade ameaça ruir, não há já, porém, tempo para as idealizações da natureza. É preciso abrir de todo as portas da cidade ao “espaço verde”, massa informe de plantas entendidas na medida da sua utilidade e funcionalidade, quer dizer, como unidade de massa por metro quadrado e por habitante. O “espaço verde” está para o jardim tal como o subúrbio está para a cidade. Não é por acaso que é no subúrbio que o “espaço verde” mais prospera. Mas junto ao coração da cidade, menos que amostra amorfa da natureza, ele não é mais do que o triste vestígio de que o coração da cidade parou de bater. Em vão tentaremos reanima-lo à custa de retalhos de “betão verde”, apostos aos restos vomitados no frenesim devorador da construção.

A ideologia do “espaço verde” atinge o auge na década de sessenta, mas é já desde a Segunda Guerra Mundial que a cidade resvala definitivamente para um “derramamento de betão que acaba por engolir várias cidades” (9) e, entretanto, também uma boa parte do campo e das paisagens. Apesar do desenvolvimento industrial e do intenso crescimento das cidades, na primeira metade do século XX as estruturas sociais, políticas e culturais da cidade e do campo não haviam sofrido alterações profundas. Tanto o citadino como o camponês conservavam a sua identidade. Depois, subitamente, anulam-se as distâncias e as diferenças, cidade e campo tendem a fundir-se numa amálgama de espaços indistintos.

É chegado o tempo da televisão, do plástico, da massificação dos transportes individuais, dos hipermercados, dos computadores e dos satélites, mas sobretudo, de tudo o que existe à face do planeta se submeter às leis de mercado (mesmo a natureza, mesmo a guerra), de todas as coisas se converterem em produtos, em bens de consumo. É chegado o tempo da agonia das paisagens, da normalização dos costumes e das consciências, da anulação da identidade, da mais profunda exorcização do espírito dos lugares. “Novos pagãos deambulam em pêlo nas praias – mas é durante as férias. Alguns audaciosos aventuram-se mesmo em jangada pelos oceanos, mas acabam sempre por dizê-lo à televisão” (10). A nossa adoração da natureza, o paganismo contemporâneo, é bem diferente da dos nossos antepassados pagãos. O homem mudou, com ele mudou a natureza.

(7) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, pp.39-40.
(8) Cf. Charbonneau, Bernard, Ibidem, p. 40.
(9) Cf. Charbonneau, Bernard, Ibidem, p. 40.
(10) Cf. Charbonneau, Bernard, Ibidem, p.132.

Como em todas as coisas humanas as razões da forma procedem das razões do espírito. Quando, sobretudo a partir da década de quarenta, a máquina invadia os campos derrubando à sua passagem os muros e as sebes minuciosamente dispostos ao longo de séculos, as razões da cidade invadiam o campo. As máquinas tornaram inútil a actividade de uma grande percentagem da população rural, que, sem outros meios de subsistência, imigrou para a cidade. Mas o dardo que mais profundamente feriu a paisagem rural não foi senão a anulação da identidade do camponês, a televisão, o hipermercado, o microondas. A submissão do espaço rural aos determinismos da urbe e a conversão progressiva dos agricultores em “funcionários de entretenimento” ou em “jardineiros da paisagem” (JEAN CABANEL in BARIDON, 1998). Dificilmente, porém, se poderá converter toda a paisagem num imenso jardim tentando conservar artificialmente as leis de produtividade da sua estrutura, se esta, na realidade, se pretende improdutiva.

Talvez represente um grande perigo esta subversão das estruturas que ao longo dos tempos sustentaram a existência humana: a cidade, alma da civilização; e a paisagem, reflexo da relação harmoniosa entre o homem e a natureza. Mas os dados estão lançados. Do caos nascerá uma nova ordem. Por enquanto, as cidades e o campo progridem no seu fatídico destino, rumo ao subúrbio generalizado, ao caos generalizado. Nem cidade, nem campo. Extensão anárquica de moradias e arranha-céus, montes e hortas, quintas, indústrias, lixeiras, jardins, barracas, “espaços verdes”, estradas e rios. Extensão anárquica da qual os homens tentam por força evadir-se.

É esta talvez uma das marcas mais profundas do nosso tempo, a fuga generalizada. Da cidade para o campo, do campo para a cidade, e de todas as partes para onde quer que possa ser reencontrada a natureza. Sintomas de uma grave ruptura com o cosmos de que se começavam já a delinear os contornos aquando da emergência das sociedades industriais e urbanas (CHARBONNEAU, 1990).

O despertar de um sentimento da natureza, e, igualmente, de uma nova ideia de natureza, começou por se manifestar na aristocracia e burguesia rica da Inglaterra do século XVIII, cujo conforto e cultura “permitiam” o afastamento da natureza (CHARBONNEAU, 1990). A princípio somente “alguns ingleses ociosos viajam, frequentam as praias ou as montanhas” (11), mas depressa a moda conquista todo o Ocidente industrializado. No século XIX o sentimento da natureza é ainda uma moda muito elitista, um requinte reservado às classes mais abastadas e cultas, e, mesmo, um sinal de distinção. Mas, progressivamente, o fenómeno vai-se generalizando, até atingir proporções, após a Segunda Guerra Mundial, de um verdadeiro “assalto” à natureza. Tal como a princípio, os amantes da natureza de hoje, não dispensam, nas suas incursões ao mundo natural, todas as comodidades proporcionadas pelo “progresso”. Assim proliferam os hotéis, as casinhas de campo, as casinhas de praia, os campos de ténis, os campos de golfe e as estradas, que levarão cada vez mais longe e mais depressa os corpos e almas necessitados de natureza (mas também de maquilhagem) aos ditos lugares naturais, acabados de converter num tipo de subúrbio não muito diferente daquele que enreda as cidades. Para onde fugir? Aos mais abastados não restará alternativa senão procurar a natureza ainda mais longe, talvez nalgum lugar recôndito da Terra onde ainda subsista um povo primitivo...

(11) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.129.

Por fim, esta parece ser a derradeira ameaça à natureza: o “amor dos homens”. Um amor que inevitavelmente aumentará exponencialmente à medida que se tornar mais escassa a natureza. Perseguida em todos os cantos do planeta restar-lhe-ão apenas alguns pedaços da Terra resguardados a arame farpado da voracidade dos corpos e almas dos homens – os parques e as reservas naturais. Chegar-nos-ão desses “jardins do paraíso” imagens que alimentarão a nossa infinita nostalgia. Mas, para além destes “museus vivos”, a natureza persistirá sempre em nós: a cada vez que abrirmos os olhos, que bocejarmos rendidos pelo cansaço, no riso e no choro, nas corridas das crianças perseguindo as pombas nas praças. E também na força e equilíbrio infinitos do Universo: no brilho das estrelas, na duração dos dias e das noites, na violência dos vulcões e avalanchas – tudo o mais será, na melhor das hipóteses, um jardim, uma representação da natureza.

Há menos de meio século atrás, com a divulgação das primeiras imagens da Terra, principiava uma nova etapa do nosso sentimento da natureza. Perante os nossos olhos assistíamos à conversão de um mundo imenso numa pequena esfera. Sabíamos já que era assim, mas ver é crer. Frágil esfera azul, no nosso imaginário ainda estremecida pela queda das bombas atómicas de 1945. Pequena e frágil esfera mergulhada na imensidão do espaço sideral “que podemos perturbar, desagregar, ferir irremediavelmente” (12). Sabemos doravante que a nossa sorte está ligada à sua e à da fina camada verde que a recobre (BARIDON, 1998).

Em 1961 Yuri Gargarine era o primeiro homem a viajar para o espaço e a ver com os seus olhos a imagem do “planeta azul”, emocionando-se com a sua beleza. Oito anos mais tarde, em 1969, a nave espacial Apolo 11 partia para a Lua. O primeiro homem a pisar a sua superfície, Neil Alden Armstrong, fazia então uma sonante declaração: “é um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade” (13). Talvez por esta altura o homem tenha sido invadido pela esperança de uma futura fuga para o espaço. Mas, entretanto, parecem distantes as perspectivas de sobrevivência para além da esfera protectora da Terra. Eis-nos presos ao “planeta azul” e mergulhados numa vertigem de acontecimentos e previsões inquietantes: a poluição, o esgotamento de recursos, a ameaça nuclear, as transformações do clima e a subversão dos equilíbrios alcançados ao longo da história entre o homem e a natureza. A ecologia atinge então o seu pleno desenvolvimento e uma atenção renovada acerca-se de toda a paisagem.

É chegado o tempo dos grandes temores, das grandes teorias e também das grandes contradições. Na verdade, o sentimento contemporâneo da natureza pouco se distingue daquele que aflorava à alma dos homens aquando da Revolução Industrial, em que o burguês dono da indústria era também o mais aficionado amante da natureza. A única diferença é que hoje o fenómeno se democratizou. De resto, ainda um passo de titã separa as nossas práticas das nossas teorias. Mas, inevitavelmente, o fim da infância humana aproxima-se.

A natureza, a Grande Mãe, concedeu-nos, até há bem pouco, a liberdade de sermos naturais. A liberdade de agirmos espontaneamente de acordo com o nosso instinto de predadores. Até há bem pouco, não fomos senão naturais na nossa relação com a natureza. A lei servia apenas para regular as relações entre os homens. Só no final do século XIX, com os primórdios do movimento de Conservação da Natureza, se começam a esboçar os primeiros traços de um código de conduta do homem para com a natureza. Hoje, um rol interminável de leis protege a natureza, o ambiente e as paisagens. Guardas armados patrulham as reservas de África para proteger do instinto predador violento do homem faminto alguns rinocerontes e elefantes. Na China, a pena para quem abater um tigre é a morte. Mas tudo isto não passa ainda do delírio ecologista de um espírito burguês. Pois todas as portas da natureza se abrem às bolsas mais endinheiradas. A natureza de hoje, tal como nas primeiras sociedades industriais do século XVIII, continua a ser um luxo, apenas diferem um pouco as formas de lhe aceder: antes a cultura e o preço, hoje somente o preço. Há um preço a pagar pela casa no litoral ou pelo campo de golfe na área protegida, um preço a pagar pela estadia num paraíso campestre, outro a pagar pela viagem aos lugares mais belos e intocados da Terra, um preço a pagar pela caça outro pela pele de um animal selvagem. E, claro, são aqueles que poluem e espoliam a natureza mais à vontade, que mais facilmente podem pagar este preço.

(12) Cf. Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1139.
(13) Cf. http://www.aerotechnews.com/starc/1999/Moon/Spec0629Ad.html

Eis-nos ainda no melhor da nossa natureza humana: a escravizar os outros homens e a sugar com todas as forças o leite e o mel da Mãe Natureza. Parece, contudo, inevitável que o nosso comportamento nos condene, pela segunda vez, a sermos expulsos do paraíso. No princípio, Deus fez do caos a ordem e a infinita perfeição, diversidade e beleza de todas as coisas. Expulsos do Jardim da Criação e apartados do cosmos, descobrimos a natureza. Perante a sua força, e à vista da fraqueza e nudez dos nossos corpos, parecia-nos demasiado severa a sentença de Deus: “Ganharás o pão com o suor do rosto” (14). Desconhecíamos então que a natureza não era senão um prolongamento do paraíso. Dela fizemos a ordem e depois o caos, tempos de uma infância feliz. Em breve tomaremos em mãos a infinita complexidade da obra do Criador, e do caos faremos, na mais optimista das perspectivas, um jardim. Um jardim que se erguerá para além do último reduto da natureza: a natureza humana. Pois, tudo indica que só um último assomo de natureza, uma necessidade genuína de sobrevivência, nos empurrará à força para o interior do Jardim.

Se assim for, no Jardim da Criação Humana não nos será permitida a liberdade. O equilíbrio frágil que arrancaremos ao caos será necessariamente regulado ao ínfimo pormenor, não condescendendo com quaisquer infracções. A maldição de Deus soará então com verdadeira intensidade, pois tudo aquilo de que necessitamos terá que ser obtido à custa do nosso esforço. Mas, mais grave ainda, estaremos expostos ao maior dos perigos: o da ignorância. Pois não mais será permitido ao homem o dom humano de errar.

Juntamente com as novas sociedades urbanas e industriais reabrimos uma autêntica caixa de Pandora. Estaremos à altura de defrontar os perigos que se avizinham? O tempo escasseia, precipitando-se numa aceleração inédita na história, e o homem parece não se ocupar senão em esvaziar de vez todos os males da vasilha, mesmo desconhecendo de todo as suas proporções. Apesar dos esforços bem intencionados de alguns espíritos generosos, as perspectivas não são animadoras. Pouco importa, pois, iludirmo-nos agora com verdades fáceis, o futuro exige autenticidade, ele será o que dele fizermos. Talvez um assomo de consciência ainda nos permita reatar os laços perdidos com o cosmos.

Será necessário começar por compreender que a natureza não é nenhuma trivialidade que possamos relegar para os nossos momentos de ócio. Ela é, pelo contrário, uma necessidade “elementar e essencial” à existência humana, física e espiritual. No seio da Grande Mãe nascemos e nela findamos, “quando ferimos a natureza, é a nossa própria carne que rasgamos” (15). Não há pois explicação, excepto a do absurdo, para que precisemos de defender a natureza tanto das agências de turismo como da indústria química (CHARBONNEAU, 1990). Que espécie de sentimento da natureza é este que nos permite vendê-la e compra-la a retalho, como a qualquer outro produto de hipermercado embalado a celofane?

É a ordem natural na natureza que nos falta. Inútil será procurá-la num desses “lugares naturais” para onde se dirigem as massas em peregrinação espalhando um trilho de caos à sua passagem. Qualquer verdadeiro amante da natureza foge desses lugares quanto pode. Quanto a estender o caos a outras partes ainda sujeitas à ordem suprema do Universo, não se trata já de mera inconsciência, mas de uma atitude criminosa. Se é a ordem que nos falta, há que gerar a ordem, estendê-la a todas as partes hoje infectadas pelo caos (às cidades e aos campos, a todas as paisagens). Isto exigirá certamente um sentimento mais autêntico e profundo da natureza, uma violência, é certo, para com a nossa natureza humana, mas, por força, teremos que ser um pouco mais delicados e sensíveis nas nossas relações de amor para com ela.

Nas palavras sábias de Caldeira Cabral (1993), do “esplendor da ordem” emergirá a beleza, a ela intrinsecamente associada. Só a ordem nos permitirá reatar os laços perdidos com o cosmos e deter a fuga desesperada dos homens de todas as partes para todas as partes. A ordem e a arte, a verdadeira arte, laço divino entre o homem e Deus, como refere Francisco de Holanda (1984), figura iminente da história da arte portuguesa. Não haverá, porém, como produzir a ordem sem que antes, por meio de alguma fórmula ainda desconhecida, se produza uma sociedade mais justa, violando, mais uma vez, as leis da natureza humana. Problema sem solução à vista, resta-nos, por ora, procurar os princípios essenciais do que seja a ordem.

Face ao sentimento de perda do elo existencial que nos une ao cosmos, e em busca do mistério da ordem e da beleza, a partir sobretudo da década de sessenta, o pensamento humano detém-se com um interesse renovado na paisagem, pois nela subsiste o segredo de uma relação equilibrada entre o homem e a natureza. Mas, o que é a paisagem?

(14) Cf. Génesis 3:19.
(15) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.31.

O termo paisagem surge inicialmente associado à pintura pretendendo significar um “quadro representando um território (pays)” (16). Um pouco mais tarde (em meados do século XVI), converge para a distinção lexical entre território (pays) e paisagem (paysage), manifesta na maioria das línguas ocidentais, uma ideia de paisagem de “território sábio (pays sage)”, expressa já, segundo Alain Roger in Baridon (1998), em Gargantua de Rabelais, sob a designação de “Beauce”. Nesta acepção, a paisagem converte-se num território sujeito a uma elaboração do domínio da arte que, ao ser apreendido visualmente, desperta um sentimento de ordem estética (ROGER in BARIDON, 1998). Ainda paisagem cenário, desde o século XVI ao final do século XVIII, a paisagem é, de acordo com Michel Conan in Baridon (1998), “marcada por uma profunda continuidade cultural” e estreita ligação às artes (pintura, poesia, prosa, música, teatro, ópera). É justamente o desenvolvimento de uma “cultura da paisagem” (17) ou, se quisermos, de um sentimento da paisagem que conduz, no século XVIII, à criação de jardins paisagem (inicialmente na Inglaterra, depois em toda a Europa) (CONAN in BARIDON, 1998). Não se trata ainda de uma produção de paisagem mas de uma forma de representação da natureza (o jardim) que chama a si a relação harmoniosa entre o homem e a natureza (a paisagem). Mas, de facto, por esta altura, torna-se difícil distinguir o objecto (a natureza) da sua forma de representação (o jardim) (CONAN in BARIDON, 1998). Primeiros sintomas de uma crise da arte dos jardins, como afirma Dantec (1996), ou de uma crise, ainda mais grave, da própria ideia de natureza? Somos levados a crer que sem a segunda, não se opera a primeira, ou seja, que sem um sentimento da natureza autêntico não se podem verdadeiramente criar jardins.

Em meados do século XIX, em pleno desenvolvimento das sociedades industriais retorna-se a uma concepção da paisagem puramente visual (CONAN in BARIDON, 1998) e o jardim tenta retomar o seu curso autónomo, mas, desde então, afectado de uma crise profunda. Primeiro porque, com a democratização das sociedades, desaba a tradição aristocrática na qual nasceu e sempre se desenvolveu o jardim, depois porque, em espaço público, os determinismos funcionais e sociais dos urbanistas tendem a dissolvê-lo no “espaço verde” (DANTEC, 1996). Assim, na primeira metade do século XX, o desenvolvimento da arte dos jardins ocorre quase exclusivamente no âmbito da iniciativa privada (DANTEC, 1996). Mas, para além disto, os jardins deste período caracterizam-se por uma procura constante de forma, distinguindo-se principalmente duas tendências: de um lado, uma tendência para uma informalidade reactiva que se opõe à artificialização provocada pela indústria; do outro, uma tendência para a recuperação dos modelos formais anteriores à industrialização. Não será a ideia de natureza representada nestes jardins um protesto? Um manifesto motivado pelo sentimento da natureza de alguns espíritos criativos e amantes das plantas que, de alguma forma, já se encontram apartados das sociedades que integram? Certo é que estes jardins, embora muitas vezes excepcionais, não fundaram nenhuma nova tradição, nenhuma nova imagem que traduza um sentimento colectivo da natureza, semelhante aos que se sucederam até ao período Romântico.

Enquanto o jardim se afunda na mais completa obscuridade, à luz, em boa parte, da Cidade Radiosa, emerge em toda a sua força a acepção moderna (18) da paisagem, agora entendida, segundo Dantec (1996), “não como um dado geográfico ou um “facto bruto”, mas como fenómeno intencional expressivo, a partir de um sítio mais ou menos modelado pela técnica, de uma cultura ou de uma civilização” (19). É nesta acepção que se fundamenta a produção de paisagem, a princípio associada à ideia de um “ajardinamento da paisagem” (20), onde acaba por se diluir quase por completo a ideia de jardim. Assim se faz acompanhar a crise moderna da ideia de jardim por uma crise da ideia de paisagem (DANTEC, 1996). Pois este “ajardinamento da paisagem” não significa senão submeter toda a paisagem às leis de concepção do jardim (leis que não são as da paisagem), ou seja, fazer da paisagem um jardim que nem é bem jardim nem bem paisagem.

(16) Cf. Molinet (1493) citado por Alain Roger in Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1158.
(17) Cf. Michel Conan in Baridon, Michel. Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1160.
(18) Segundo Dantec (1996) a época moderna decorre no período de 1880 a 1960.
(19) Cf. Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p. 320.
(20) Cf. Christopher Tunnard in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.387.

Após a Segunda Guerra Mundial, em fase de grande conturbação conceptual no que respeita ao jardim e à paisagem, assiste-se igualmente a uma grande conturbação espacial. O que significará tudo isto? Que caímos nas malhas de uma engrenagem de que já não somos capazes de nos libertar, mesmo em pensamento? Certo é que, após Russel Page e Burle Marx, criadores de jardins notáveis que atravessam o período do antes e do após a Segunda Guerra Mundial, poucos foram aqueles que se continuaram a dedicar declaradamente à arte dos jardins.

Como justificar este aparente eclipse de um espaço e de uma ideia que acompanham o homem desde o início dos tempos? É possível que tenha ocorrido uma transformação da ideia de natureza de tal forma profunda, que a sua representação, na origem de espaços inteiramente novos, não nos pareça imediatamente reconhecível como jardim. Tal sucederia se a transformação da nossa ideia de jardim não acompanhasse ao mesmo ritmo a transformação da ideia de natureza, e apenas alguns espíritos mais avisados e melhor informados, fossem capazes de conceber (quer conceptualmente, quer na prática) o jardim do nosso tempo. Com efeito, parece ser esse o caso de alguns jardins contemporâneos assim classificados, onde só com grande esforço e muita ajuda do rótulo conseguimos ver um jardim.

Outra hipótese, é de que se tenha, na época contemporânea, dado continuidade à tendência, já verificada, para a substituição de uma nova acepção da paisagem pela, velha, de jardim (DANTEC, 1996). De facto, um enorme aprofundamento do conhecimento conduziu nas últimas décadas a um nova ideia da paisagem que engloba as suas “realidades materiais, constituídas por elementos geográficos, quer eles sejam naturais como os traços do relevo (...) ou criados pelo homem” (21), “as suas “realidades imateriais” associadas à percepção, do domínio estético, mental e afectivo, e as suas realidades ecológicas e culturais. Pressupondo que a esta acepção se pode associar um conhecimento das leis da paisagem, e que com estas se pretende ordenar a paisagem, a produção de paisagem faz hoje muito mais sentido. Pois não é a paisagem uma produção humana, ainda que inconsciente, fruto da necessidade, gerada pelas leis da paisagem? Fará assim tanta diferença passar de um estado inconsciente de produção de paisagem para um estado consciente? Talvez somente a diferença de um jardim. Isto justificaria que se fale actualmente em jardim planetário, um jardim, tal como a paisagem, originado por meio de uma articulação equilibrada entre o homem e a natureza (esta, por sua vez, baseada na história, no conhecimento da paisagem e na ecologia) prolongando-se por toda a superfície do globo terrestre, entendido agora como espaço fechado, tal como na origem o jardim.

Jardim-paisagem ou paisagem-jardim, a verdade é que estes conceitos se tendem a fundir na época contemporânea sob a designação genérica de “paisagem”. A este respeito Michel Baridon (1998) aponta como “facto muito revelador” a mudança de nome, em 1998, da “revista internacional que conferiu ao jardim o seu estatuto de arte maior” (22) de Journal of Garden History para Studies in the History of Gardens and Designed Landscapes. Quererá isto dizer que o jardim, tal como até agora o entendíamos, se converteu numa curiosidade histórica, e que a sua continuidade futura será assegurada pelas designed landscapes? Talvez. Actualmente subsistem ainda, contudo, vários tipos de jardins de características bastante nítidas. Jardins que representam a natureza tal como ela é, e onde se confunde a representação com o objecto representado, correspondentes aos “pedaços de natureza” preservados da acção humana, “retirados ao espaço comum” (23) e “sujeitos ao controlo e à lei” (24) (como é o caso dos parques naturais) e a outros espaços criados de forma a que a acção humana se torne imperceptível. Jardins de aparência estranha que poderíamos dizer representam uma “natureza técnica” (veja-se por exemplo o caso do Jardim do Aeroporto de Schiphol de Adriaan Geuze ou o Splice Garden de Marta Schwartz). Jardins jardins, jardins de sempre, a que poderíamos chamar tradicionais, que integram a história, a cultura e as características das paisagens locais, representando uma ideia de natureza motivada por um sentimento individual, em estreita ligação, todavia, a uma cultura e região particulares (veja-se por exemplo o caso dos jardins de Sven-Ingvar Andersson, na Dinamarca, os de Piet Oudolf, na Alemanha, ou os de Fernando Caruncho, na Espanha).

(21) Cf. Jean Cabanel in Baridon, Michel. Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1154.
(22) Cf. Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1154.
(23) Cf. Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.424.
(24) Cf. Dantec, Jean-Pierre le, Ibidem, p.424.

O jardim do século XX é, pois, uma incógnita. Talvez a incógnita que sempre acompanha o presente, ou um passado recente, e à qual só o futuro reserva respostas. Assim, não nos resta senão, por último, fazer referência à sua permanente mutação, chamando em nosso auxílio o testemunho de alguns dos seus teóricos e criadores.

“Acumular as plantas, por mais belas que sejam, não é suficiente para criar um jardim; não se conseguirá mais do que uma colecção. As plantas adquiridas, é necessário distribui-las com cuidado. Contentar-se em plantar, sem harmonizar as flores entre si, é o mesmo que para o pintor abastecer-se dos melhores materiais e dispor as cores sobre a paleta... ele no entanto não compôs um quadro” (25)
Gertrude Jekyll, Colour in the Flower Garden, 1908.

Um jardim é “um apartamento para a vida ao ar livre” (26) onde se manifesta “a mesma intenção decorativa que usamos no interior da nossa casa ao posicionar os tapetes estendidos” (27)
André Vera, Le Noveau Jardin, 1911.

“Da mesma forma que a casa não é uma gruta selvagem, o jardim não pode ser somente natureza; a natureza livre é a matéria-prima, o jardim deve ser uma obra de arte” (28)
Jean-Claude Nicolas Forestier citado por Jean Marc Bernard, La Renaissance du jardin français, 1913.

“A nova paisagem é um jardim sem limites. O novo jardim precederá a nova paisagem” (29).
Christopher Tunnard, Gardens in the Modern Landscape, 1938.

“O jardim é a porção do espaço exterior que o homem mais intensamente amoldou às suas necessidades e prazeres, e destes não é certamente o menor o de sentirmos que aqui tudo nos obedece – conforme as nossas posses é claro – e que o solo, o clima, e até as estações do ano se podem modificar para servirem as nossas conveniências” (30).
Francisco Caldeira Cabral, Conferência proferida no I.S.A.,1941.

“O jardim foi sempre o prolongamento da casa, ao ar livre, e, por isso, a sua primeira característica é ser habitável” (31).
Francisco Caldeira Cabral, Conferência proferida no I.S.A.,1941.

“Um jardim não se faz, cria-se. Trata-se, como em toda a criação artística, de trabalhar com elementos de forma e cor, ritmo e volume, cheios e vazios” (32).
Roberto Burle Marx, Jardins au Brésil, 1947.

“Um jardim é a adequação de um meio ecológico às exigências naturais da civilização” (33).
Roberto Burle Marx, Paysage, botanique et écologie, 1994.

“Se admitirmos que é próprio do jardim dar a ver e a sentir, por meio de artefactos principalmente vegetais, um espaço no qual se propõe uma visão ideal do par homem/natureza, damo-nos conta, com efeito, das dificuldades com que se defronta uma tal proposta nos dias de hoje” (34).
Jean-Pierre le Dantec, Jardins et Paysages, 1996.

“Cada pedaço de terra pode ser considerado como um pedaço da Terra, cada jardim, como fragmento de um jardim muito maior, estendendo-se aos limites do planeta” (35)
Gilles Clément, Les Libres Jardins, 1997.

“Para mim a natureza nas cidades é sinónimo de jardim” (36)
Sven-Ingvar Andersson, The Antidote to Virtual Reality, 1999.

“Ao longo de certas estradas, encontramos jardins involuntários. A natureza fê-los. Eles não têm ar de serem selvagens e, no entanto, são-no. Um indício, uma flor particular, uma cor viva, demarcam-nos da paisagem”
Gilles Clément, Le jardin en mouvement, de la Vallée au jardin planétaire, 2001.

“A paisagem, na sua complexidade biológica, diversidade de formas e escalas é hoje o ponto de chegada da ideia que traduz, na sua plenitude, o jardim como lugar último do homem” (37).
Gonçalo Ribeiro Telles, Palavra-Jardim, 2001.

(25) Cf. Gertrude Jekyll in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, 1996, p.346.
(26) Cf. André Vera in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1991, p.382.
(27) Cf. André Vera in Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1122.
(28) Cf. Jean-Claude Nicolas Forestier citado por Jean Marc Bernard in Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1114.
(29) Cf. Christopher Tunnard in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.387.
(30) Cf. Cabral, Francisco Caldeira, Fundamentos da Arquitectura Paisagista, Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa, 1993, p. 88.
(31) Cf. Cabral, Francisco, Ibidem, p. 87.
(32) Cf. Burle Marx in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.399.
(33) Cf. Burle Marx in Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.401.
(34) Cf. Dantec, Jean-Pierre le, Jardins et Paysages, Larousse, Paris, 1996, p.423.
(35) Cf. Clément, Gilles, Les Libres Jardins, Éditions du Chêne, Paris, 1997, p.9.
(36 Cf. Andersson, Sven-Ingvar, “The antidote to Virtual Reality” in Between Landscape Architecture and Land Art, 1999, p.160.
(37) Cf. Gonçalo Ribeiro Telles citado por Carapinha, Aurora, “O espaço, o lugar e o tempo” in A Utopia e os Pés na Terra, Gonçalo Ribeiro Telles, Instituto Português de Museus, Évora, 2003, p.231.

CAPÍTULO 2 - AS PLANTAS E A ARTE






Figuras B1. Os troncos ancestrais das árvores são fruto de uma arte única – a da própria natureza.

2.1. A dimensão plástica da vegetação

As plantas possuem qualidades estéticas intrínsecas. A sua natureza viva, “todo o seu aperfeiçoamento de formas, de cores, de ritmos, de estruturas, faz com que elas pertençam a um outro plano, ao de seres estéticos, dos quais a existência é um mistério para o homem” (1). Acresce ao seu encanto uma diversidade sem limites para a imaginação quando se trata de, através delas, criar um jardim.

De acordo com Sven-Ingvar Andersson (1993), um jardim compõe-se de um cenário (de uma imagem) e de um palco (de uma arquitectura). O palco é um espaço. O lugar onde se actua, onde se desenvolve a acção, onde se colhem as impressões ao movermo-nos através do jardim. O cenário é, por outro lado, uma imagem estática, apreendida ao contemplar o jardim ou alguma das suas partes. No que respeita à aplicação de material vegetal, a arquitectura do jardim depende fundamentalmente da distribuição espacial da vegetação. Para a modelação cénica da sua imagem, contribuem a natureza dos volumes das plantas, as suas formas, texturas e cores. Características que, por esta razão, designaremos por qualidades plásticas da vegetação. Cenário e palco são indissociáveis, mas é sobretudo das qualidades plásticas da vegetação que depende a definição da imagem do jardim (veja-se, a título de exemplo, o caso de dois jardins monocromáticos de arquitectura semelhante: se as cores dominantes no primeiro forem os azuis e no segundo os tons laranja, a sua imagem será totalmente distinta).

A imagem do jardim encontra-se, assim, estreitamente associada às características intrínsecas das plantas, dependendo tanto da arte de seleccionar a vegetação, como da sensibilidade estética aplicada à sua conjugação. Aspectos a par dos quais não poderá ser descurada a sua natureza viva, as suas exigências ecológicas, edáficas e climáticas, assim como as transformações que ao longo do tempo e das estações do ano lhes são próprias.

Apesar da sua complexidade, o emprego da vegetação como meio de expressão plástica suscitou, ao longo do século XX, inúmeras abordagens, em muitos casos em estreita relação com as artes visuais. Aspecto em cuja análise nos deteremos, expondo alguns dos casos mais representativos do século, após uma referência genérica às qualidades plásticas da vegetação, determinantes para a definição da imagem do jardim: volume, forma, textura e cor.

(1) Cf. Adams, William Howard, Roberto Burle Marx: The Unnatural Art of the Garden. Distributed by Harry N. Abrams, Inc., New York, 1991.

Figuras B2. A beleza deslumbrante dos nenúfares.

2.1.1. Qualidades plásticas da vegetação

Muitos jardins são concebidos a partir das próprias características das plantas. As condições específicas de adaptação ao meio constituem, neste caso, um importante contributo para uma escolha apropriada da vegetação. Porém, quaisquer que sejam as condições edáficas e climáticas, permanece sempre uma enorme diversidade tanto de espécies como de opções para a sua combinação. Assim, a decisão final a respeito da vegetação a aplicar ao jardim depende também de um impulso criativo, de um sentimento de ordem estética, que sempre deve ser considerado a par da fitossociologia e das condições ecológicas dos habitats (LUZ, 2001).

A determinação de harmonias e contrastes entre volumes, formas, texturas e cores constitui um elemento chave para o sucesso de uma composição, mas apenas se for acompanhada da simplicidade necessária a uma leitura clara das relações estabelecidas. O princípio das espécies dominantes de Heiner Luz (2001) traduz, justamente, as regras elementares para a combinação de espécies vegetais: simplicidade; unidade; e diversidade. De acordo com este princípio, a diversidade não deve ser entendida como o emprego do maior número possível de espécies distintas, mas antes como “a variação e/ou alteração da combinação de um pequeno número de elementos formativos” . A simplicidade deve, deste modo, procurar-se na clareza e na concisão de um número restrito de elementos dominantes que assegurem a unidade de toda a composição. As espécies dominantes determinam a aparência geral do conjunto e as suas variações sazonais, sendo acompanhadas por um número variável de outras espécies (substancialmente menos significativo), de aparência menos marcante, que acrescentam uma maior biodiversidade à comunidade (LUZ, 2001).

Sem diminuir a importância do carácter voluntário do desenho, este princípio possui um carácter marcadamente ecológico, reflectindo as características essenciais das associações fitossociológicas (figura B3).

Numa perspectiva de composição plástica, a concentração da atenção nas relações de contraste e semelhança de apenas uma ou duas das qualidades plásticas da vegetação – volume, forma, textura ou cor – constitui uma das melhores formas de impôr ao desenho clareza, nitidez e unidade, já que, reduzida a complexidade da composição, mais facilmente se poderão dominar as suas componentes estética, funcional e ecológica (por exemplo, concentração na semelhança das cores, como sucede nos jardins monocromáticos, ou apenas nos contrastes entre diferentes texturas).

Sylvia Crowe (1994) considera que “as melhores associações são entre plantas que têm um elemento em comum e outro contrastante. O contraste completo entre todos os elementos pode ser usado para uma ênfase particular, mas se repetido demasiadas vezes o efeito desaparece, quebrando a unidade dada pela conectividade da semelhança” (3).

(3) Cf. Crowe, Sylvia, Garden Design, Garden Art Press, UK, 1994, p.131.
Figura B3. Ilustração do princípio das espécies dominantes.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Volume

“O desenho fundamental das paisagens e jardins resulta da distribuição e proporção entre espaço aberto e fechado” (4). Os volumes da vegetação são muitas vezes o principal elemento de definição do espaço no interior do jardim determinando padrões de aberto e fechado, interior e exterior, escuro e luminoso (CROWE, 1994). Através dos volumes podem construir-se no espaço os mais variados tipos de estruturas tridimensionais e conferir-lhes diferentes qualidades através da própria natureza dos volumes empregues, em particular no que respeita à sua densidade. Os volumes são, pois, uma característica da vegetação com influência simultânea na arquitectura e na imagem do jardim (figura B4).

As árvores constituem geralmente os volumes de maior dimensão e permanência no interior do jardim. Os seus volumes, muitas vezes elevados pelos troncos a uma altura que permite a circulação sob as suas copas, influenciam de forma determinante as características de luminosidade do espaço. As sombras das árvores reflectem as características de densidade dos seus volumes: densos e opacos ou leves e transparentes. As espécies de folha caduca apresentam variações sazonais de densidade que acompanham, de um modo geral, as variações de intensidade da luz das diferentes épocas do ano, tornando-as adequadas à maioria das utilizações. Os volumes das árvores de folha persistente são frequentemente densos e opacos e, por isso, muito marcantes. Quando isoladas estas árvores constituem excelentes pontos focais e, se em grupo, podem ser aplicadas como panos de fundo, na delimitação de espaços fechados, ou em barreiras de protecção contra os ventos (5) (MARTIN, 1983).

(4) Cf. Crowe, Sylvia, Garden Design, Garden Art Press, UK, 1994, p.107.
(5) Sabe-se no entanto que, quando aplicadas em barreiras de protecção contra os ventos a sua disposição não deve ser de forma a constituir uma barreira estanque, para evitar turbulências violentas das massas de ar.

Figura B4. No jardim de Packwood House (Inglaterra), restaurado pelo Barão Ash em 1930, uma curiosa composição de teixos talhados evoca, segundo a lenda, o Sermão da Montanha (AAVV., The Garden Book, 2000). Apesar de simples, este espaço possui uma força invulgar provocada pelo contraste intenso entre os volumes densos do teixo e o plano horizontal definido em relvado.
Figura B5. Os labirintos são muitas vezes espaços visualmente fechados. Existem, porém, inúmeros labirintos abertos, tal como este, concebido por Doug Macy e Larry Kikland (no Estado de Oregon, nos Estados Unidos da América), sem quaisquer barreiras quer físicas quer visuais. Uns e outros possuem ambiências muito distintas, e por isso os labirintos são particularmente ilustrativos das possibilidades de conversão do carácter de um espaço por via da alteração das suas volumetrias.
Os volumes dos arbustos possuem características de densidade idênticas às das árvores mas, evidentemente, não influenciam da mesma forma as características de luminosidade do espaço, pois situam-se sobre o plano do solo e as suas dimensões são, em geral, consideravelmente menores.

Certas espécies de arbustos possuem, na sua forma natural, volumes cuja conformação se assemelha à de sólidos geométricos (como o Buxus microphylla, o Teucrium fruticans, ou a Santolina chamaecyparissus) sendo, com frequência, utilizados em composições plásticas invulgares. Embora possam desempenhar uma multiplicidade de papeis no interior do jardim, os volumes dos arbustos são particularmente importantes na definição do espaço, constituindo limites e divisões espaciais, que podem, de acordo com as suas dimensões e densidades, ser apenas físicas ou físicas e visuais (figura B5).

Na modelação do espaço através da vegetação, as árvores e arbustos constituem as principais “massas” de volume, enquanto as herbáceas, em particular as herbáceas de revestimento, dão origem aos “vazios”. No entanto, apesar de possuírem em geral dimensões reduzidas, as herbáceas podem desempenhar funções estruturais e definir as divisões espaciais do jardim em massas de volumes de pequena dimensão.

A determinação de espaços abertos e fechados a diferentes níveis e de diferentes densidades (ou graus de transparência) pode constituir em si um argumento de composição e uma forma de enriquecimento da diversidade de um espaço (figura B6).

De acordo com E.C. Martin (1983), os princípios a considerar na definição do espaço e da imagem através da vegetação são a escala, a proporção, o equilíbrio de simetria e de assimetria, a repetição ou ritmo, a dominância, e o contraste. A escala estabelece uma relação mensurável entre as diferentes dimensões dos elementos de uma composição. A proporção relaciona os elementos entre si e com o todo. A proporção entre espaço aberto e fechado é um dos aspectos fundamentais a considerar em composições de volumes. O equilíbrio é estabelecido pela igualdade (equilíbrio de simetria) ou semelhança (equilíbrio de assimetria) da importância relativa ou “peso” (físico e visual) de cada elemento, por relação a um eixo ou a um ponto. Nas relações de equilíbrio de assimetria não é possível, em muitos casos, considerar apenas as características de volume e densidade da vegetação uma vez que outras qualidades (como a textura ou a cor) podem alterar completamente o seu “peso” ou valor relativo (o peso de uma árvore de textura grosseira ou floração intensa é, por exemplo, muito diferente do de uma de textura fina ou floração sem impacto visual, ainda que ambas possuam volumes e densidades idênticos). A repetição ou ritmo respeita à criação de sensações de movimento e progressão pelo uso repetido dos mesmos elementos compositivos (repetição das mesmas espécies, volumes, formas, linhas, texturas, ou cores). O princípio de dominância refere-se à acentuação do valor relativo de um elemento ao qual os restantes são subordinados. No que respeita às composições de volumes a dominância pode ser estabelecida pela dimensão (os volumes das árvores são em geral dominantes sobre os dos arbustos) e pela densidade (volumes densos dominam sobre volumes transparentes). Por último, o contraste consiste na acentuação de um efeito de composição pela oposição de elementos distintos.

Os princípios gerais de composição propostos por E.C. Martin (1983) são extensíveis também à conjugação de formas, texturas e cores.
Figura B6. No Jardim Este da casa de Hatfield em Hertfordshire, na Inglaterra, restaurado pela Marquesa de Salisbury em 1977, é possível observar um extraordinário jogo de harmonias e contrastes entre diferentes volumes, densidades, plantações formais e informais.

Forma

O volume é uma qualidade da vegetação que diz respeito ao espaço tridimensional, a forma à sua percepção bidimensional. Reconhecemos a forma porque ela se destaca do fundo tornando possível a sua delimitação através de um contorno. Por esta razão, a nitidez da forma beneficia com uma disposição em contraluz que torne aparente a sua silhueta. No Outono, a silhueta das espécies de folha caduca revela o imbricado de formas semelhantes que compõem as estruturas vegetais e a sua relação com a forma característica da planta. A estrutura é, por isso, muitas vezes indissociável da forma em termos de composição plástica.
Encontramos na vegetação as mais variadas formas de apreender a forma: as formas características das espécies, com as suas formas de flores, de folhas, de ramos e troncos; a forma particular dos espécimes quando deformados pelo tempo ou pelo meio; as formas artificiais recortadas pelo homem; as formas compostas de formas; etc (figuras B7).
Figuras B7. Cada lugar da Terra tem o seu rol variado de formas. Elas são expressivas – falam do sítio onde habitam, do tempo que viveram, do vento, da água, da luz, da neve e da terra. Cada forma é singular. A sua diversidade é, por isso, infinita.
A escala é essencial na apreensão da forma enquanto qualidade plástica da vegetação. Quando as plantas são consideradas isoladamente, a importância da sua forma aumenta, de um modo geral, por relação ao porte. Assim, geralmente, as formas das árvores são as que mais influenciam a imagem de um jardim, seguidas dos arbustos e, por último, das herbáceas (6). Contudo, o fundamental é a escala – num espaço de dimensões reduzidas um vaso com uma herbácea pode ser tanto ou mais importante que uma árvore de grande porte num espaço de grandes dimensões (figura B8).

(6) Deve a este respeito ter-se presente que a classificação em árvores, arbustos e herbáceas, assenta em características associadas à inserção dos ramos e sua lenhosidade, não havendo propriamente uma relação quanto às suas dimensões relativas, embora esta geralmente se verifique.
Figura B8. Neste pequeno jardim concebido por Madison Cox em 1990 para uma cobertura em Manhattan (New York, EUA), uma cuidadosa composição de vasos de terracota com herbáceas, perfeitamente coordenada com as dimensões do espaço, demonstra claramente a influência determinante das relações de escala no interior de uma composição.
Certas formas destacam-se, pela sua peculiaridade, da generalidade das formas encontradas na vegetação. Estas “formas extremas”, muito marcantes, possuem um grande valor na medida em que reforçam o carácter de uma composição (CROWE, 1994). Todavia, devem ser empregues cuidadosamente e, apenas, onde é necessária uma maior ênfase. Nas árvores, as formas extremas mais frequentes são as fastigiadas (como a do Cupressus sempervirens), as colunares (como a do Taxus baccata) e as pendentes (como a do Salix babylonica) (7).

As formas de todas das plantas estão em permanente mutação, são formas vivas, que crescem, que se renovam, e que envelhecem. Nas espécies de folha caduca, as transformações periódicas da aparência da forma, que ocorrem aquando da queda das folhas, põem em evidência as estruturas das plantas, gerando uma grande variedade e dinâmica que contrasta com a permanência das formas das espécies de folha persistente.

Por vezes, as condições particulares do meio deformam a vegetação alterando as formas características das espécies. Este é o caso das zonas ventosas onde as formas são, muitas vezes, esculpidas pelo vento. Neste caso, o valor da forma é reforçado pois reflecte de modo evidente o carácter próprio do sítio.

As alterações à forma da vegetação também podem ser produzidas artificialmente, ou seja, esculpidas pelo homem a partir da sua forma original. A criação de formas artificiais - topiária - foi uma arte muito desenvolvida nos séculos XVI e XVII e tem vindo a ser renovada ao longo de todo o século XX (figuras B9-B10).

(7) Nalgumas regiões, tais como a região mediterrânica ou em regiões de climas tropicais, por aí não serem características, as formas piramidais são também consideradas extremas.


Figuras B9. As formas de topiária mais extravagantes são geralmente encontradas em jardins amadores onde o acto criativo se manifesta independentemente de qualquer preconceito de gosto. Se bem que possam ser encontradas um pouco por toda a parte, nos Estados Unidos da América, uma tradição recente na arte dos jardins parece contribuir para um tratamento extraordinariamente livre da topiária. Pássaros, elefantes, ursos, e toda a variedade de bichos, figuras humanas e formas geométricas excêntricas integram a linguagem de alguns jardins americanos em curiosas composições. Dois casos invulgares de jardins animados por uma grande diversidade de figuras em topiária são o Jardim de Green Animals em Massachusetts (à esquerda), concebido por Joseph Carreiro e George Mendonça, famoso pela sua grande variedade de animais esculpidos em teixo e buxo e o Topiary Garden (à direita), criado por Elaine Mason (entre 1988 e 1992) no estado de Ohio, onde um conjunto de figuras humanas reproduz o célebre quadro de Seurat: Sunday On The Island Of La Grande Jatte.

sábado, 10 de abril de 2010

Figuras B10. Formas de topiária em contextos diversos: em cima, o Jardim dos Corações concebido por René Péchère (na segunda metade do século XX), paisagista considerado, a par de Jacques Wirtz, um dos mestres da arte topiaria moderna (DANTEC, 1996); em baixo, formas de topiária para venda.
Recentemente um ramo particular da topiária - a arboroescultura (arborsculpture) – tem vindo também a despertar a atenção. Ao contrário da topiária tradicional, que consiste em talhar a folhagem das plantas de acordo com a forma pretendida, a arboroescultura tem por fim a modelação das formas dos ramos e troncos por enxertia, entretecimento de ramos e outras técnicas especializadas (SCHNEIDER, s/d). Os primeiros exemplos conhecidos deste tipo de intervenção, tomada como uma curiosidade, remontam já ao início do século XVI (http://www.arborsmith.com/history.html) sendo, no entanto, poucos os casos conhecidos da sua aplicação até aos nossos dias, e a sua divulgação restrita (figuras B11-B12). O termo arboroescultura surge apenas em 1995, aplicado por Richard Reames, um “arboroescultor” que acredita nas potencialidades desta arte, dedicando-se à sua prática, estudo e divulgação.
Figura B11. Axel Erlandson (1884-1964) foi uma das figuras que mais de destacou na prática da “arboroescultura”. Começou por modelar a forma das árvores como passatempo, experimentando com velhos exemplares de buxo, vidoeiros, freixos, ulmeiros, e salgueiros-chorões (SCHNEIDER, s/d). As estranhas formas de Axel Erlandson, torções diversas, corações, cadeiras, escadas, espirais, ziguezagues, anéis, gaiolas de pássaros e tramas, acabariam por dar origem ao Tree Circus (na imagem a Torre de Sicómoros do Tree Circus), uma atracção turística, inaugurada em 1947, em Scotts Vallley. Pouco antes da sua morte, Axel Erlandson desfaz-se do seu Tree Circus, decorrendo um período de cerca de vinte anos em que as árvores são negligenciadas. Michael Bonfante, viveirista e amante das árvores, acabará por adquirir, em 1984, a colecção de árvores sobreviventes (vinte e cinco exemplares) transplantando a maioria para o seu jardim, na Califórnia. Em 2001, o Bonfante Gardens Theme Park abre ao público, exibindo as esculturas vivas de Axel Erlandson como uma das suas principais atracções (SCHNEIDER, s/d). As Tree Circus foram objecto de diversas publicações, mas só recentemente se revelou um maior interesse pelas potencialidades plásticas e funcionais da arboroescultura (David Nash, artista de Land Art, é um dos adeptos desta técnica de modelação das formas vegetais).






Figuras B12. Formas de arboroescultura em formação, apresentando ramos ainda jovens e flexíveis.
No jardim do século XX, a formas das plantas, tanto isoladamente como em grupo, tem vindo a adquirir cada vez maior valor escultórico. Por vezes, as próprias plantas são tidas como esculturas vivas, tornando-se objecto de cuidados especiais no que respeita à sua localização e enquadramento. Neste caso, a escolha da forma pode não depender apenas das características da espécie, mas recair sobre a própria singularidade do espécime, sobretudo se é possível a transplantação do exemplar adulto para o local pretendido.

Mais frequentemente, as plantas são usadas em composições escultóricas onde as diferentes formas estabelecem entre si relações de contraste e de semelhança. De acordo com Sylvia Crowe (1994) “a base destes agrupamentos é a combinação clássica de formas verticais, oblíquas e prostradas, por vezes, o contraste simples entre horizontal e vertical, ou estático e dinâmico” (8).

As composições de formas semelhantes produzem um efeito de massa, dando origem a formas que englobam todo o conjunto. No entanto, a forma do conjunto está intimamente relacionada com a forma dos elementos que o constituem, sendo indispensável um conhecimento exacto das plantas como indivíduos na produção deste tipo de formas.

Quando, pela justaposição de formas semelhantes, se produz um efeito de massa e repetição, o conjunto das formas individuais passa a ser aprendido como textura (MUNARI, 1991). Por esta razão a forma das folhas de um grande número de plantas é percepcionada, geralmente, apenas na sua dimensão de textura.

(8) Cf. Crowe, Sylvia, Garden Design, Garden Art Press, UK, 1994, p.125.

Textura










Figuras B13. Exemplos de algumas texturas: textura muito grosseira (Catalpa bignonioides, canto superior esquerdo);
textura grosseira a mediana (Viburnum tinus, canto superior direito); textura fina (Buxus sempervirens, canto inferior esquerdo); textura muito fina (Soleirolia soleirolii, canto inferior direito).
No jardim japonês a textura sempre desempenhou um papel de grande importância. Na tradição ocidental, porém, só recentemente, em particular no decurso do século XX, se tem vindo a valorizar cada vez mais esta qualidade, explorando-a em todas as suas possibilidades. Sylvia Crowe (1994) considera mesmo que o desenho do jardim contemporâneo é por vezes definido a partir das próprias superfícies texturadas.

A textura é uma qualidade das superfícies apreendida visualmente, tal como a cor, mas que desperta impressões tácteis. Ao incidir sobre superfícies com diferentes orientações (como as folhas), a luz é reflectida de forma diferenciada definindo zonas de luz e de sombra que permitem o reconhecimento, através da memória visual, da rugosidade das superfícies (BALSTON, 1989). Assim, embora as suas características possam, na maioria dos casos, ser confirmadas pelo tacto, a textura, quando apreendida visualmente, não é mais do que a sensibilização das superfícies através da luz. Por esta razão, a nitidez da textura beneficia com a incidência directa da luz.

As sombras das árvores de copa aberta e transparente também sensibilizam as superfícies sobre as quais recaem criando sobre elas texturas aparentes que as valorizam, em especial quando são planas (como superfícies pavimentadas, relvados ou prados). Para Sylvia Crowe (1994) este tipo de sombra matizada é de todas a mais agradável que as árvores produzem.
Figura B14. Um tratamento exemplar das texturas num projecto de Kathryn Gustafson (http://www.kathryngustafson.com/).
A vegetação possui texturas com características muito variadas: texturas muito grosseiras (como a da Catalpa bignonioides) a muito finas (como a da Soleirolia Soleirolii); densas (como a do Buxus Sempervirens) a semi-transparentes (como a da Syringa vulgaris); opacas (como a do Ginko biloba) a brilhantes (como a do Laurus nobilis). Para certos propósitos do desenho a escolha das características texturais é particularmente importante, como no caso da definição de panos de fundo, em que as texturas finas, densas e opacas são as que mais favorecem o enquadramento a flores ou a outros elementos. Por outro lado, árvores de textura grosseira e recortada saem beneficiadas quando utilizadas como pontos focais a uma distância que permita que a sua textura seja apreciada sobreposta ao céu (CROWE, 1994).

O princípio de maior importância no agrupamento de plantas com diferentes texturas é a simplicidade. Este principio, que se traduz numa leitura clara das relações entre os diversos elementos, é tanto mais relevante quanto menor for a variação de volume e de forma no interior da composição, pois, neste caso, são as qualidades das superfícies que determinam os seus diferentes planos e a sua variedade (figura B14).

O uso da textura como forma de composição plástica é particularmente adequado a espaços pequenos, onde as distâncias permitam a apreensão do pormenor. Nestas circunstâncias, a textura é tão importante como a cor, ainda que a sua percepção possa ser mais subtil. À medida que as distâncias aumentam, a textura dilui-se em mancha, e a cor é a qualidade de superfície que domina.

Cor

A cor é um fenómeno de luz. Sob a incidência da luz branca as superfícies reflectem comprimentos de onda específicos da região visível do espectro electromagnético que são apreendidos como diferentes cores (http://acept.la.asu.edu./PiN/rdg/color/color.shtml). As superfícies negras absorvem toda a luz que sobre elas incide, as brancas reflectem-na.

O verde é a cor mais característica das folhas e a que geralmente determina a aparência das plantas por um período mais prolongado, devendo ser considerada em qualquer composição. Os cambiantes de verde da vegetação - verdes escuros, verdes médios, verdes claros, verdes acinzentados ou glaucos, verdes azulados, etc. - permitem por si só as mais variadas opções de combinação, sobretudo quando associados às respectivas características texturais (figuras B15). As cores das folhas não devem, portanto, ser negligenciadas em virtude de efeitos de cor temporários, ainda que estes possam, por vezes, ser determinantes.




Figuras B15. Imagens: Laurus nobilis (em cima); Ginko biloba; o verde (direita); Catalpa bignonioides (canto inferior esquerd0).
Figuras B15. A variedade de cores das folhas das plantas, a par das suas texturas e formas, é por si só um importante factor de enriquecimento do jardim. As imagens apresentadas dão uma pequena ideia desta extrema variedade: o verde-escuro e brilhante do Laurus nobilis, o verde-médio mate do Ginko biloba; o verde-claro da Catalpa bignonioides; os tons glaucos da Euphorbia characias em desenvolvimento; os tons azulados da Festuca glauca, o púrpura de uma cultivar de Canna ‘Purpurea’. Imagens: Euphorbia characias (esquerda); Festuca glauca (centro); Canna ‘Purpurea’ (direita).